segunda-feira, 17 de setembro de 2012

TEXTOS DE CARÁCTER AUTOBIOGRÁFICO



O mito de Narciso é a representação mais evocada a propósito da escrita autobiográfica. Narciso que se contempla nas águas e se apaixona pela sua imagem é também um duplo ser: simultaneamente o eu que olha e o outro que é olhado, o sujeito e o objecto do desejo. Narciso é, ao mesmo tempo, realidade e ilusão: tem um corpo verdadeiro, e enamora-se desse corpo reflectido.
Clara Rocha, Máscaras de Narciso, Coimbra, Almedina, 1992, pp.50-51



<><><>


Caravaggio, Narciso.1599



<><><>

Narciso

Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!

Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!

Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!

José Régio, in Biografia

<><><>

Narciso

De n'água contemplar-se onde se vê Narciso
se inclina sobre si para beijar-se e a imagem
avança em lábios trémulos que o respirar
ansioso escrespa o espelho prestes a partir-se.

Não foi de contemplar-se ou de a si mesmo amar-se
que em limos se fundiu com a sua imagem vácua
mas de não ter sabido quando não de olhar
nem só de húmidos beijos se perfaz o amor.

Jorge de Sena, 9/7/1970

<><><>

Narciso

Ouço dizer que as águas cantam o amor, correndo,
e que nas suas margens há arbustos debruçando
tristezas profundas. Mas nem as águas nem o vento
nos arbustos me falam de mim; eu que solitário
me debruço numa ânsia de tocar-me, e o rosto perco
no abismo da superfície; que o segredo que oculto
em mim persigo, num silêncio me evocando entre
os alheios rumores da vida; e que o tempo esqueço,
absorto na minha própria alma que obscureço.

Nuno Júdice, Obra Poética (1972-1985), Lisboa, Quetzal, 1991, p.281

<><><>

Narciso

Curvei, sobre o regato, o corpo todo...
Porém, mal entrevi o meu retrato,
que foi olhar e as águas do regato
se turbaram, manchadas do meu lodo.

Depois, cavei cá dentro com denodo;
perfumei-me de flores azuis do mato;
e, quando cri expulso o lodo inato,
mais uma vez curvei o meu corpo todo.

E as águas tardaram em toldar...
Mas debruço-me ainda, pois espero
que me hão-de um dia, claras, espelhar.

Tanto faz ver-me belo ou feio, então;
só cristalinas, límpidas, as quero,
prà tua sede antiga, meu Irmão.

Sebastião da Gama, Itinerário Paralelo

<><><>

<><><>


*** biografias -  http://www.leme.pt/biografias/


<><><>


 Poderá interessar-lhe:

<><><> 

Sem comentários: