O
mito de Narciso é a representação mais evocada a propósito da escrita
autobiográfica. Narciso que se contempla nas águas e se apaixona pela sua
imagem é também um duplo ser: simultaneamente o eu que olha e o outro que é
olhado, o sujeito e o objecto do desejo. Narciso é, ao mesmo tempo, realidade e
ilusão: tem um corpo verdadeiro, e enamora-se desse corpo reflectido.
<><><>
Narciso
Dentro de mim me
quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois
sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível
face e que arcabouço
Este meu corpo
lânguido escondia!
Ó boca tumular,
cerrada e fria,
Cujo silêncio
esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos
sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar
melancolia!
Assim me desejei
nestas imagens.
Meus poemas
requintados e selvagens,
O meu Desejo os
sulca de vermelho:
Que eu vivo à
espera dessa noite estranha,
Noite de amor em
que me goze e tenha,
...Lá no fundo do
poço em que me espelho!
José Régio, in
Biografia
<><><>
Narciso
De n'água
contemplar-se onde se vê Narciso
se inclina sobre si
para beijar-se e a imagem
avança em lábios
trémulos que o respirar
ansioso escrespa o
espelho prestes a partir-se.
Não foi de
contemplar-se ou de a si mesmo amar-se
que em limos se
fundiu com a sua imagem vácua
mas de não ter
sabido quando não de olhar
nem só de húmidos
beijos se perfaz o amor.
Jorge de Sena,
9/7/1970
<><><>
Narciso
Ouço dizer que as
águas cantam o amor, correndo,
e que nas suas
margens há arbustos debruçando
tristezas
profundas. Mas nem as águas nem o vento
nos arbustos me
falam de mim; eu que solitário
me debruço numa
ânsia de tocar-me, e o rosto perco
no abismo da
superfície; que o segredo que oculto
em mim persigo, num
silêncio me evocando entre
os alheios rumores
da vida; e que o tempo esqueço,
absorto na minha
própria alma que obscureço.
Nuno Júdice, Obra
Poética (1972-1985), Lisboa, Quetzal, 1991, p.281
<><><>
Narciso
Curvei, sobre o
regato, o corpo todo...
Porém, mal entrevi
o meu retrato,
que foi olhar e as
águas do regato
se turbaram,
manchadas do meu lodo.
Depois, cavei cá
dentro com denodo;
perfumei-me de
flores azuis do mato;
e, quando cri
expulso o lodo inato,
mais uma vez curvei
o meu corpo todo.
E as águas tardaram
em toldar...
Mas debruço-me
ainda, pois espero
que me hão-de um
dia, claras, espelhar.
Tanto faz ver-me
belo ou feio, então;
só cristalinas,
límpidas, as quero,
prà tua sede
antiga, meu Irmão.
Sebastião da Gama,
Itinerário Paralelo
<><><>
Poderá interessar-lhe:
<><><>
Sem comentários:
Enviar um comentário