sábado, 13 de outubro de 2012


Diário



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É um facto, os escritores portugueses não têm por hábito escrever diários. No século XX, que me lembre, as excepções foram Manuel Laranjeira, Florbela Espanca, Irene Lisboa, José Gomes Ferreira, José Régio, Miguel Torga, Sebastião da Gama, Vergílio Ferreira, Ruben A., Mário Sacramento, Jorge de Sena, José Saramago, Maria Gabriela Llansol e Marcello Duarte Mathias. Dito assim, parece muito. Infelizmente não é, porque, exceptuando Torga e Vergílio Ferreira, autores de diários de largo fôlego, e de certo modo também Ruben A. e Saramago, com meia dúzia de volumes cada, o restante são fogachos, sem prejuízo da qualidade literária ou introspectiva de alguns. Um diário é sobretudo minúcia. Tudo seria diferente se houvesse diários de Teixeira de Pascoaes, Aquilino Ribeiro, Fernando Pessoa — O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, pode ser entendido como diário, sim senhor, mas diário mental —, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, António Ferro, António Botto, Vitorino Nemésio, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, Joaquim Paço d’Arcos, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, Óscar Lopes, Sophia de Mello Breyner Andresen, Natércia Freire, Carlos de Oliveira, Agustina Bessa Luís, Eugénio de Andrade, Natália Correia, Urbano Tavares Rodrigues, Mário Cesariny, António Manuel Couto Viana, Alexandre O’Neill, Bernardo Santareno, José Cardoso Pires, Fernanda Botelho, Luís de Sttau Monteiro, António Alçada Baptista, David Mourão-Ferreira, Alberto de Lacerda, Herberto Helder, Rui Knopfli, Ruy Belo, Helder Macedo, M. S. Lourenço, Fernando Assis Pacheco, Maria Teresa Horta, Ary dos Santos, Armando Silva Carvalho, Maria Velho da Costa, Luísa Neto Jorge, Vasco Graça Moura, João Miguel Fernandes Jorge, António Franco Alexandre, Eduardo Prado Coelho, Joaquim Manuel Magalhães, Eduarda Dionísio, Al Berto, Nuno Júdice, Luís Miguel Nava, etc. A história literária não dispensa testemunhos na primeira pessoa. Mas o país é pequeno, e a cáfila espreita. Páginas avulsas dos diários de Eugénio Lisboa, José Augusto Seabra e Almeida Faria, disseminadas em publicações conspícuas, dão conta da parcimónia. No tocante a volumes de memórias ou relatos explicitamente autobiográficos — como, por exemplo, os de Fernanda de Castro, José Augusto França e Luiz Francisco Rebello —, a escassez é de rigueur. Decididamente, não temos a vocação dos Gide, Renard, Larbaud, Gombrowicz, Kafka, Musil, Pavese, Kierkegaard, Stendhal, Amiel, Michelet, Hugo, Artaud, Mauriac, Valéry e outros (dispenso-me de citar ingleses e americanos: são muitos, são muito bons, qualquer escolha seria redutora). Por conta de todos, Virginia Woolf. E, claro, Beckford, que deixou dos portugueses um retrato pouco amável. A rapariga à minha frente vai-se embora com três cadernos de Sudoku. Chegou a minha vez. Onde é que eu ia?



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JANEIRO 1930

11 – Para mim? Para ti? Para ninguém. Quero atirar para aqui, negligentemente, sem pretensões de estilo, sem análises filosóficas, o que os ouvidos dos outros não recolhem: reflexões, impressões, ideias, maneiras de ver, de sentir – todo o meu espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez profundo. […]

Florbela Espanca, Contos e Diário. Lisboa. Publicações Dom Quixote. Pág. 269


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Isto é quase um diário íntimo e se digo quase é porque, apesar de tudo, sei muito bem que outros, que não só eu, o vão ler, e isso, que não obsta a que sejam sinceras todas as minhas palavras e verdadeiras todas estas histórias, me impede de contar “… certas coisas que terei pudor/de contar seja a quem for”.

Sebastião da Gama, Diário






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O Diário

Tinha um diário aonde ia escrevendo,
Dia a dia, a agonia dos meus dias:
Era um romance tremendo,
Dilacerado de piedade e de ironias.

Todas as noites escrevia nele
Quando voltava lá de baixo, lá do mundo,
Equanto na parede, um cristo imbele
Caía moribundo.

Um brandão quase verde dava luz...
Parecia que alguém ia morrer.
E eu, realmente, em frente da agonia de Jesus,
Agonizava horas e horas, a escrever.

Tudo o que a gente sente, ou pensa, e não confessa,
Tudo que só na escuridão a gente sonha,
O escrevia, com suor frio na cabeça,
E lágrimas no rosto incendiado de vergonha!

Assim eu descobria o meio de exercer,
Continuando entre vós, sem me desmascarar,
Todas as faculdades do meu ser:
Infâmias e virtudes que não ouso revelar...

E, quando enfim me abandonava, exangue,
Sobre o meu leito, a olhar o Cristo moribundo,
Gozava sonhos de oiro com relâmpagos de sangue,
E em que descia em mim até ao fundo.

Era assim que sabia possuir
Toda a minha Grandeza e toda a minha Corrupção.
Mentia-vos depois? Ah! o gosto de mentir
Com a verdade na mão!

Ora um dia (era um dia extraordinário),
Procurando escrever como nos outros dias,
Nada pude escrever, e pus-me a ler o meu diário:
Cheguei ao fim, tinha as mãos lívidas e frias!

Que o meu olhar agora cristalino,
Vira que nessas páginas, tudo era mentiroso:
Porque tudo o que em mim é só abjecto ou pequenino,
Lá surgia dramático, e, por isso grandioso.

Sim, todos esses crimes e heroísmos só sonhados,
Todo esse mundo íntimo - era meu!
Mas o vulto que unia esses bocados,
Esse, ó poder do Artista! era maior do que eu.

E eu vi como não era a posse da Verdade,
Nem a libertação de quem se expande,
O que pedia ao meu diário... mas vaidade
De até no aviltamento me ver grande!

Ergui então o meu diário à luz verde-amarela...
Por um momento só no quarto houve mais luz...
E todo o resto dessa noite horrenda e bela
Chorei, torcendo as mãos em frente de Jesus.

José Régio, Poemas de Deus e do Diabo. Lisboa, Portugália Editora, pág. 112


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David Mourão-Ferreira por Francisco Simões
5.ª feira, 25 de abril de 1974

13h Arezzo. Chegámos há meia hora em “pullmann” […]
14h  45m. Acabo de telefonar para a Carmo, em Bolonha. Vem o Franco ao telefone – e dá-me vivas e parabéns em altos gritos. Só depois a notícia: que houve esta madrugada um golpe de Estado em Portugal. Ao que parece, Spínola e Costa Gomes senhores da situação; Marcelo e Tomaz, refugiados em Monsanto; vinte e nove regimentos revoltados; ocupados os estúdios do Rádio Club e da Televisão.
15h 50m. Já telefonei para Lisboa. E falei com o meu Pai que, exultante, me confirmou, no essencial, as notícias do Carmo.
Vim depois a pé, desde o Hotel; estou agora no Duomo – mas incapaz, absolutamente incapaz, de apreciar isto como deve ser.

David Mourão-Ferreira, in Jornal de Letras, n.º 801, de 13 a 26 de Junho de 2001

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Miguel Torga por Botelho

Coimbra, 26 de Janeiro de 1988 – É instrutivo ver os vários retratos que fazem de nós pela vida fora. Com traços lisonjeiros ou desagradáveis, entram-nos sempre pelos olhos dentro como estranhos, a perturbar uma paz que tinha um rosto habitual, familiar, a que estávamos acostumados. À imagem tranquila, sobrepõem-se outras inquietantes que não servem no cartão de identidade, e, contudo, nos identificam publicamente mais até do que a que nele figura. É que não se trata de neutras fotografias. São perfis apaixonados, justos ou injustos, com as virtudes e os defeitos cruamente patenteados. Quem  um dia nos lembrar, é por eles que nos lembra. Somos o que só nós sabemos, e parecemos o que os outros dizem de nós.

Miguel Torga, Diário, vol.XV


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