quinta-feira, 6 de junho de 2013



CARTAS




Pierre Bonnard, The Letter.1906
- aqui











PEÇAS DE MUSEU

      Acabo de sofrer uma das maiores humilhações da minha vida. Ainda por cima aqui no meu bairro, as pessoas a olharem para mim com aquele sorriso de meia boca, género «coitadinha, não liguem».
Ia eu, muito pacificamente pela rua acima, deitar umas cartas no marco do correio, quando oiço estalar uma gargalhada a acompanhar o vozeirão do meu amigo Fernando que ali, em altos berros, para toda a gente ouvir, me reduzia à insignificância de ainda precisar de usar um objecto tão obsoleto e anacrónico (a expressão, obviamente, é dele). Olhei em roda à procura do tal objecto, que eu não descobria em parte nenhuma, mas ele não parava de falar e de rir, que há não sei quanto tempo não via uma pessoa servir-se daquilo, que se tivesse ali uma máquina fotográfica até registava o momento, se eu não sabia que havia uma coisa chamada computador e outra coisa chamada e-mail, e ria, e ria, e as pessoas passavam, olhavam, e riam com ele, e eu ali, finalmente a perceber que era do pobre marco do correio que ele falava.
Lembrei-me, então, de outra vez em que uma coisa semelhante se tinha passado comigo, embora não tão ostensivamente humilhante, coisa bem mais pacata e silenciosa. Estava eu nessa altura de férias no Luso, a tentar escrever alguma coisa à mesa do café. Faltou-me a tinta e rapo de um tinteiro pequeno que tinha acabado de comprar e, logo ali, encho a caneta. É então que uma das empregadas se especa à minha frente, mãos espalmadas na barriga, e murmura: «Jasus! Desde o tempo da minha escola primária que eu não via uma pessoa fazer isso!»
Pois é. Eu escrevo cartas. À mão. Com caneta. Com tinta. E – o que ainda torna tudo muito pior – gosto muito. E tenho muita pena que esse prazer se esteja a perder. Às vezes penso que o progresso e os avanços (tecnológicos e não só) estão a fazer desaparecer alguns dos grandes prazeres da nossa vida. Para já, a enorme loucura da pressa com que sempre andamos fez-nos perder o prazer de ter tempo para perder tempo.
Come-se em pé no balcão da esquina, e a correr, porque atrás de nós estão mais dois ou três à espera do lugar.
E o pão que comemos não sabe a pão, feito à pressão naquelas casas que substituíram as honradas padarias e se chamam «boutiques do pão».
E a maçã que comemos não sabe a maçã, feita em estufas, toda do mesmo tamanho e com aquele aspecto que até parece que saiu da história da Branca de Neve, e onde nenhum bicho entra, porque o bicho é esperto e nós não.
E depois há o telemóvel para resolvermos negócios enquanto estamos a atravessar o passeio, para não perdermos alguns minutos, e quando nos enfiamos no comboio nem sequer olhamos para a paisagem porque ligamos imediatamente o nosso PC portátil, e fazemos da carruagem a extensão do nosso escritório, perdendo todo o prazer da viagem.
E escrever cartas. O prazer de tocar no papel, de sentir o aparo deslizar, de saborear as palavras que se vão alinhando, o prazer de escrever cartas de amor ridículas, cartas de adeus desesperadas, cartas banais da pequena intriga familiar, cartas enormes como as que escrevíamos na nossa adolescência, quando os amigos nos faziam tanta falta e os dias eram desmesuradamente grandes.
E olho para as prateleiras da estante, com aqueles volumes de correspondência de escritores, que sabe tão bem ler, e penso que tudo isso vai acabar também, e as cartas, e os selos, e os bilhetes postais, e os marcos-de-correio-de-portinha-ao-centro, e as canetas e os tinteiros vão transformar-se muito rapidamente em peças de museu para mostrarmos aos netos dizendo «a avó ainda usou isto» e eles a olharem para nós e a não acreditar.

Alice Vieira, Pezinhos de Coentradas





UMA CARTA PARA LEONOR

De cada vez que pedia a morada a alguém lá vinha sempre a mesma estranheza: «Morada? e-mail, queres tu dizer» e ela a explicar que não, que era mesmo morada, rua, número de porta, andar, código postal, essas coisas, porque lá em casa não havia computador.

Olhavam-na com a mesma expressão de incredulidade com que a olhariam se tivesse admitido a falta de água canalizada e a consequente necessidade de recorrer ao poço mais próximo.

A neta, evidentemente, não escapava à regra. «Ó avó, escrever cartas? Que seca!», e lá se enfiava pelo sofá abaixo, enviando furiosos SMS ao mundo inteiro.

Por isso aquele pedido lhe parecera estranho. «Uma carta? Tu queres mesmo que eu te escreva uma carta?», e Leonor a dizer que sim, que queria mesmo, uma carta ou postal, tanto fazia.

Ela pensa que afinal nem tudo está perdido, que é sempre boa altura para levar alguém ao bom caminho, e o pedido de Leonor compensa-a um pouco daquela humilhação de há dias, quando a Teresa a viu deitar uma carta no marco do correio e desatou a rir no meio da rua, com as pessoas todas a olharem para ela, «Mas tu ainda usas disso? E não me digas que ainda escreves com pena de pato?!»

Com pena de pato evidentemente que não, mas com caneta, escolhida com muito cuidado, entre as suas canetas de que tanto se orgulhava e que desistira de um dia oferecer à neta. Mas podia ser que agora as coisas mudassem. «Uma carta ou um postal, avó, escreva-me quando não tiver nada que fazer.»

Lembra-se do tempo em que o filho era pequeno e das recomendações que lhe fazia quando ele ia de férias com os amigos: «depois escreve!». E ele depois escrevia. Nem sempre grandes cartas («Mãe: não tenho nada para dizer. Beijos», escreveu ele uma vez numa carta que traz sempre consigo), mas escrevia. Guardou as cartas todas – dos namorados, do marido, do filho, dos amigos – e não sabe como teria sido capaz de sobreviver sem elas.

Quando o filho, nessa tarde, entrou em casa, como tantas vezes fazia quando saía do escritório, encontrou-a atarefada a escolher a caneta com o aparo mais macio, as cargas de tinta preta («escreve-se sempre com tinta preta», ensinara-lhe o pai), toda a parafernália necessária, como se, de repente, fosse começar uma profissão nova.

«Ó Mãe», riu-se ele, «não esteja com tantas preocupações! Para o que eu penso que a Leonor quer, qualquer coisa serve!» Ela olhou-o meio zangada, estes pais agora não têm tempo para os filhos, para falarem com eles, para os conhecerem, e depois queixam-se. Mas o filho continuava a rir: «Sabe que ela pediu a toda a gente que lhe escrevesse? A Isabel também achou estranho, mas eu é que topei logo o esquema!» Outra gargalhada, que por momentos lhe pareceu as da Teresa diante do marco do correio. «Se a mãe visse o novo carteiro lá da rua, percebia logo! sabe como eles são agora, novos, bem penteados e bem falantes, e o nosso tem feito um sucesso lá no bairro. A Leonor até parece parva quando olha para ele… Está a perceber porque é que ela quer que lhe escrevam, está?» E o filho ria, como em criança. Deu-lhe um beijo a correr e saiu porta fora.

E ela ficou parada no meio da sala, com vontade de escrever uma carta ao carteiro agradecendo-lhe a ajuda na conversão da Leonor ao bom caminho. Afinal, uma carta ainda servia para alguma coisa. Havia de o contar à Teresa quando a encontrasse.

Alice Vieira, Pezinhos de Coentradas


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Imagem: aqui





7.4.1971

Meu amor querido

Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinezinha minha Pauline Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu Setembro de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Pasargada meu templo grego minha colina meu verso de Höderlin meu gerânio meus olhos grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas unhas polidas meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos minha doce forquilha de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de fonte meu lago minha Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre ruínas minha Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha harpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para o mar meu manjerico meu cravo de papel minha Madragoa minha morte de amor minha Ana Karénine minha lâmpada de Aladino minha mulher.

António

in D'este Viver Aqui Neste Papel Descripto - Cartas da Guerra

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Chiúme, 20,11.71

Meu querido amor

Sábado, e sem notícias. O melhor é desesperar de esperar. Mas o que também me custa é pensar que as minhas cartas para aí terão um atraso muito grande. Confio que não estejas preocupada.
Começam febris idas e vindas: para a semana, suponho que de hoje a oito dias, começa a tal operação de que te falei, flechas, paras, o diabo. Só quero que me não arranjem muitas chatices e não me roubem muito tempo, de que preciso para a história.
Agora, com as chuvas, não calculas a quantidade de insetos que andam por toda a parte, rastejando, pulando, marchando, voando. Louva-a-Deus enormes, feitas de arame, com quase um palmo de comprimento, borboletas noturnas de todos os tipos, algumas gordas e verdes, absolutamente repelentes, formigas de asas, mosquitos, pequeninos bichos sem classificação com uma irresistível tendência para se nos meterem nos buracos do nariz, estranhas aranhas voadoras, sei lá. As lagartixas e lagartas que abundam pelas paredes, mesmo nas dos quartos, andam completamente loucas com a súbita variedade do menti. Isto é uma terra de excessos de toda a ordem. Nada tem medida nem contenção: um bocado como a minha louca prosa, em que se cosem feridas com tiras de solda.
Já perdi entretanto as esperanças de falar para a televisão no Natal do soldado, e de dizer adeus até ao meu regresso: os tipos não se atrevem a vir tão longe, o que eu compreendo muito bem... E tudo continua no ramerrame do costume, que os acidentes brutais interrompem de quando em quando. Mas até isso, com o tempo, deixa de ser surpresa ou indignação: aceita-se com o fatalismo que aqui se aprende, feito de muita angústia e de muito sofrimento banalizados e tornados quotidianos e familiares. Pode-se viver em plena paz com o medo e o horror e suportá-los ambos sem dificuldades de maior. É uma questão de nos tornarmos de pedra.
Como está a bonita e adorada e querida filha do meu coração? Amanhã faz 5 meses. Deve estar uma esbelta senhora, cheia de pretendentes expeditivos. Quando eu voltar ponho toda essa malta na ordem, a coice.
E tu, meu amor? Como estás tu? Saudades minhas? Gosto sempre tudo tudo tudo de ti. És tão bonita! A falta que tu me fazes! Quando quando quando? Milhões de beijos e todo o amor do mundo.
António

António Lobo Antunes, D'este viver aqui neste papel descripto. Cartas da guerra

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 Carta a um namorado do futuro

Queria muito ter-lhe escrito para lhe dar pelo menos uma explicação, mas (eu não paro se começo com "mas") estou sitiada física e psicologicamente desde princípios de Maio.
Resumindo, digo-lhe que este papel de carta, este envelope e a caneta (infelizmente preta) me foram gentilmente trazidos pela enfermeira Sandra, que é muito simpática e costuma fazer o turno das vinte e quatro horas. São agora perto das duas da manhã e eu não durmo porque a enfermaria está cheia de senhoras com mais quarenta e cinco anos do que eu, ligadas a tubos, soro, máquinas de oxigénio que produzem um ruidinho contínuo e irritante. Logo, eu não durmo.
Queria contar-lhe tudo - tudo inclui o que me está a acontecer, o que sinto e o que penso […] mas impede-me o receio de me tornar uma vulgar doente de hospital.
Ontem, enquanto gravava uma cassete com música, deixei-me vaguear pelo quarto - conhece aquelas bailarinas em plástico dentro de caixinhas de música? - dentro de um pijama branco bordado com pequenas borboletas azuis. Não lhe posso chamar dançar porque não sei dançar. Abano-me ligeiramente, melancolicamente, ao ritmo da música e mesmo isso nem sempre. Porque há vezes em que a música não me faz vaguear, nem abanar, nem rebolar dentro do pijama branco bordado de azul. Faz-me ficar quieta, sozinha, a ouvir. É o melhor de tudo. Era só uma cassete para eu ouvir no carro, naquelas alturas em que viramos uma esquina e a XFM desaparece e começamos a pensar se será, desta vez, para sempre. Depois de ter acabado de gravar a cassete, achei que lha devia mandar. Nós também somos a música que ouvimos. Portanto, ao ouvir a minha música, vai ficar um bocadinho, durante um bocadinho como eu. [...]
As coisas de que eu mais gosto são as flores do campo, o mar, os rios e toda a água corrente, fria ou quente. Laranjas, limões, limas e tudo o que faz mal ao fígado. Apanhar vento na cara. Dar de comer aos patos no parque da cidade. Ficar horas deitada na relva a ver o céu. Cozinhar para os outros. Tratar dos vasos e das plantas do jardim. Dormir com o meu gato preto. Ajudar o meu pai nas vindimas, fazer o vinho e levar o brolho para o alambique. Ver o bagaço a cair em fio e sentir aquele cheiro forte e quente.
Desculpe tanto desabafo. E não é metade do que sinto. Obrigada.

Pedro Paixão, Nos Teus Braços Morreríamos

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CARTAS DE AMOR

Neste tempo de sms, likes, emoticons, haverá ainda quem, com pena e papel, se sente a escrever cartas de amor? 
Creio que o simples imaginar da cena causa hilaridade, para não falarmos do perigo que acarreta expor em frases que ficam – scripta manent – emoções e sentimentos que, exaltados por natureza, contêm o risco clássico do feitiço que se volta contra o feiticeiro.
Numa ou noutra altura, em estado febril, provavelmente quase todos nós, maiores de cinquenta anos, cometemos o erro de caligrafar em papel acessos de paixão, o mesmo é dizer que nesta e naquela gaveta, ou entre páginas de sonetos, se escondem umas quantas bombas de relógio. Não das que explodem em estilhaços e causam mortes, mas das que, como as do gás de mostarda,  discretamente espalham o seu veneno.
Imaginem-na, a esquecida namorada, irreconhecível, tão diferente da jovem que foi, e agora, num gesto de teatro, espalha sobre a mesa do café umas quantas folhas, em que não só reconhecemos a nossa letra, mas, bem pior, nos levam a recordar em detalhe quanto nos esforçámos, buscando-as no dicionário, por  encontrar palavras que, como um vidro de aumento, engrossassem a paixão.

J. Rentes de Carvalho



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Correspondência

Vejo as nuvens que avançam do Atlântico
para o continente. E, por trás delas, como um pastor
exigente, o vento que as empurra. Depois,
as nuvens passam e volta o sol, com o azul
imutável das manhãs de outono, monótono e distante
como quem o olha, ao sair de casa, sem
tempo para pensar no tempo.

As nuvens, no entanto, continuam
o seu caminho: umas, desfazem-se em água
sobre campos vazios, ou descem para as grandes
cidades para as abraçar com um tédio
enevoado. As que me interessam, porém,
são as que sobem para norte, e ficam
mais frias à medida que as pressões continentais
abrandam o seu curso. Então, param
em dias cinzentos; e, por fim, escurecem
a tua alma, quando as olhas, e te apercebes
de que se aproxima um inverno
de solidão.

A não ser que leias, nesse obscuro céu,
esta carta que te mando.

Nuno Júdice, O Movimento do Mundo




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CARTA

Bem quisera escrevê-la
com palavras sabidas,
as mesmas, triviais,
embora estremecessem
a um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
canais de argila e sombra,
ela iria contando
que vou bem, e amo sempre
e amo cada vez mais
a essa minha maneira
torcida e reticente,
e espero uma resposta,
mas que não tarde; e peço
um objeto minúsculo
só para dar prazer
a quem pode ofertá-lo;
diria ela do tempo
que faz do nosso lado
as chuvas já secaram,
as crianças estudam,
uma última invenção
(inda não é perfeita)
faz ler nos corações,
mas todos esperamos
rever-nos bem depressa.
Muito depressa, não.
Vai-se tornando tempo
estranhamente longo
à medida que encurta.
O que ontem disparava,
desbordado alazão,
hoje se paralisa
em esfinge de mármore,
e até o sono, o sono
que era grato e era absurdo
é um dormir acordado
numa planície grave.
Rápido é o sonho, apenas,
que se vai, de mandar
notícias amorosas
quando não há amor
a dar ou receber;
quando só há lembrança
ainda menos, pó,
menos ainda, nada,
nada de nada em tudo,
em mim mais do que em tudo,
e não vale acordar
quem acaso repousa
na colina sem árvores.
Contudo, esta é uma carta.

Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética



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Jeanie Liehe. The Read Letter
- aqui



carta para A.

viste que os dias não passavam
disto, e viste bem. desse lado
do céu, tens o melhor miradouro
sobre a madrugada. se encontrares
o pintainho que sepultámos,
em segredo e lágrimas, no
quintal das tias, pede-lhe o
arco da sua asa nas noites de lua nova.
remete-me, quando puderes,
pacotes de chuva miúda, gosto
de a ver decalcar a terra, fundir-se
com as sementes de milho
no canto da achadinha.

entretanto, vou montando o
telescópio, com as instruções
que me deste. põe-te à vista
e combinamos um gelado a
meio caminho,
à hora da infância.

Renata Correia Botelho,  Avulsos por causa, 2010




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CARTA DA INFÂNCIA


      Amigo Luar:


      Estou fechado no quarto escuro
      e tenho chorado muito.
      Quando choro lá fora
      ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das minhas mãos
                e brincar com elas ao orvalho nas flores pela manhã.
      Mas aqui é tudo por demais escuro
      e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
      Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão cedo e te
                oiço bater, chamar e bater, na fresta da minha janela.
      Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
      vem agora,
      no bico dos pés
      para que eles te não sintam lá dentro,
      brincar comigo aos presos no segredo
      quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
      bons dias, amigo.


          Carlos de Oliveira, Trabalho Poético





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CARTAS DO PERÚ DO OLIVAIS


I

Adorada perua:
Há dias que, diante do patrão,
ando de rua em rua
não sei por que razão.
Como tu viste, o homem resolveu
fazermos em Lisboa a consoada,
para me divertir, suponho eu.
Porém, se adivinhasse esta estopada,
tinha-lhe dito logo que não vinha,
tanto mais, tanto mais, não vindo tu,
minha peruazinha,
por quem morre de amor o teu perú.
É para ver a terra? Não percebo,
pois mal ergo a cabeça para o ar
trabalha logo a cana do mancebo
e continuo a andar, a andar, a andar...
Às vezes lá paramos, mas estranho
também estas paragens,
porque me agarram certas personagens,
tomam-me o peso, notam-me o tamanho
e até (Deus me perdoe se ouço mal!)
discutem o valor,
como se eu fosse, amor,
uma coisa venal!
Adeus. Com isto não te enfado mais.
Havendo novidades
escrevo. Mil saudades
e beijos do

Perú dos Olivais

II

Meu anjo... Escrevo agora na cozinha
duma senhora muito delicada,
que me tem dado esplêndida papinha
assim como a criada.
Há pouco ainda (ora imagina, filha!)
deram-me até um copo de Bucelas
que me adoçou muitíssimo as goelas
e é uma verdadeira maravilha,
mas Deus queira, Deus queira
como só bebo água lá em casa,
que não me faça mal à mioleira
e que eu não fique com um grão na asa.
Amanhã te direi o que é passado.
Recebe mil bicadas cordiais
do teu apaixonado

Perú dos Olivais

III

Querida. Água a ferver... Uma panela
ao pé dum alguidar... tenho receio...
Fala-se em cabidela
e em perú de recheio...
Afia-se uma faca... Ó céus! Que horror!
O monco já me cai... Nunca supus...
Que é isto meu amor?
Ai Jesus! Ai Jesus!
Já tenho as pernas presas...
Tolda-se a vista... Engasgo-me... Agonizo...
Tremem-me as miudezas...
Turva-se-me o juízo...
Adeus: Recebe o último glu-glu
e os corais
do in... fe... liz
Pe... rú... dos O... li...vais

Acácio de Paiva — Poemas 




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PARA O MEU AMOR
por Fernando Alvim


Meu amor, escrevo-te como te havia prometido para dizer no fundo o que já sabes: que gosto de ti. E não é de agora. Eu gosto de ti desde os tempos do antigamente em que as mulheres usavam sombrinhas na rua, para que o sol não as incomodasse. Eu gosto de ti desde aí meu amor, e sei bem que nunca o terás notado, porque quando te aproximas todo eu estremeço, como quando o vizinho de cima fecha a porta de casa com muita força e todo o prédio ouve. Meu amor, tu não precisas de qualquer porta para te fazeres notar, porque a tua simples passagem, a tua presença, é superior a mil portas a fecharem-se com estrondo.
Meu amor, eu queria ter-te sempre ao pé de mim e ensinar-te palavras em português que eu sei que terás sempre dificuldade em dizer. Por exemplo: amo-te. As pessoas têm muita dificuldade em dizer isto em Portugal mas eu vou-te ensinar a dizê-lo na perfeição. De tal modo, que quero que olhes para mim e o digas todos os dias. Até ser perfeito. Até saber tão bem como sabem os bons-dias quando ditos com vontade. A grande maioria das pessoas quando diz os bons-dias não o deseja de verdade. Deseja-se um bom dia como poderia perguntar-se se tem rebuçados para a tosse. E com o amo-te por vezes também é assim. As pessoas acham giro porque ouvem nas telenovelas a dizerem-no com tal destreza, que pensam que na vida real também é assim, que quando o dizemos também se ouve uma música de fundo que sobe à medida que nos beijamos.
E agora que penso nisto, pergunto: Como se dirá amo-te em finlandês? Como se dirá amo-te na Finlândia? Porque é que só aí existem saunas mistas? Gostava tanto que me ensinasses coisas sobre a Finlândia que até podíamos fazer uma espécie de acordo. Eu ensino-te a dizer amo-te em português e tu em finlandês. E, em nossa casa, eu só falo em finlandês com os miúdos e tu em português. E é nesta universalidade que celebraremos o nosso amor, hoje Helsínquia, amanhã Lisboa, aqui Cavaco Silva, ali Tarja Halonen, na Finlândia os Him, aqui os Delfins, em Suomi 5 milhões, em Portugal 10.
Mas não seremos mais dois, meu amor. Seremos 5, seremos 10 milhões, seremos Portugal e Finlândia, o mundo inteiro se quiseres, desde que saibamos dizer amo-te na minha, na tua língua, em todas as línguas, como se de cada vez que o fizéssemos, fosse tal a intensidade, que o mundo inteiro nos celebrasse. E o mundo, é esse que vês daí meu amor. Está inteirinho, à nossa espera.

Este conto faz parte do número 33 da Revista 365, e foi ilustrado por Alex Gozblau.



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In Práticas de escrita, Lisboa Editora


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Fernandinho meu, e hoje muito bonito

Venho escrever-lhe, e por acaso à hora que me costuma telefonar (8h) porque como talvez saia com a minha irmã, depois do jantar, ficaria amanhã sem carta minha, se o não fizesse agora.
O meu amor, dispôs-me lindamente para todo o dia com a sua carta, e para completar, telefonou-me duas vezes, que me deixou ficar radiante.
Então o meu queridinho estava triste, estava? tinha razão, fechado numa gaveta, coitadinho!... Quem foi o patife que lá o meteu? Deve ter sido o Sr. Engenheiro, com certeza. Quantos socos já terá apanhado a esta hora? Quem me dera ser 'Mimi'... Dava-lhe muitos socos, mas por cada soco cinquenta jinhos... Quia? Dos tais, como o líquido que há no Abel. Depois do meu amor ter essa bebida à sua disposição já não vai mais ao Abel, pois não?
Vieram agora mesmo chamar-me para jantar, até já, é servido? Quem me dera tê-lo ao meu lado a jantar! Eu servia-o, queria?
Pronto, já papei, e papei bem porque estou contente, o meu amor com certeza tamem já papou. Quando papa comigo? Isto já parece qualquer coisa que que eu li há tempo, creio que do Santa Rita; o Preto papão que papava a papinha, qualquer coisa neste género que achei graça. (Ou o Papim, qualquer coisa que me não lembra agora).
Fica para sábado o nosso encontro, conforme combinámos pelo telefone, às 5 1/4, se convier ao meu Fernandinho, sim? Se puder, telefona-me?
Então o meu feio pergunta-me na sua carta se gosto de si exactamente? Gosto exactamente, gosto exactamente muito; gosto exactamente muitíssimo! O Fernadinho gosta de mim exactamente menos. Chama-me feia, vespa e muitas coisas feias, já vê que não gosta tanto de mim, que só chamo coisas menitas.
O Fernandinho ainda se lembra como eu sou, como é a minha cara? Há tantos dias que me não vê...
Tá melhorzinho da doidice?! Mas eu gostava de tê-lo assim doido, como o indica a sua cartinha de hoje, e prezo-me de não ter nada mau gosto, porque eu sou uma rapariga de bom gosto.
Adeus querido amor, bonequinho meu, para eu brincar visto ser bebé. Até sábado, Tiozinho!

Uma noite muito feliz lhe deseja a muito sua

Íbis

3-10-1929
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Terrível Bebé;

Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o Bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano, mas é escrito por mim

Fernando  

9-10-1929



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Eduardo Lourenço: Amor e Literatura
A correspondência amorosa entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz é o tema deste texto de Eduardo Lourenço, publicado no JL 1112, de 15 de maio de 2013

Para os admiradores incondicionais de Pessoa, a leitura da sua correspondência com a predestinada jovem com o nome fatídico de Ofélia não é um texto como qualquer outro de Pessoa. Podemos imaginar que na sua perspetiva este episódio único do poeta da "Tabacaria" como pastor amoroso era, ou foi, tão ficcional como todos os outros que subscreveu com o seu nome ou com o dos famosos heterónimos.
A esta última comédia que lhe conferiu uma aura universal designou-a ele como "drama em gente". Mais sofisticado labirinto literário não se conhece. Há mais do que a sombra dele, ao menos do seu lado, nas cartas que trocou com Ofélia, vítima propiciatória da alma múltipla apostada em imitar Deus e ser como ele "tudo de todas as maneiras".
Só que Ofélia não era um seu heterónimo mas uma jovem burguesa de Lisboa dos anos 20, que talvez nunca tenha imaginado que chamou a atenção de Pessoa por ter aquele nome mítico como destino.
E destino lhe foi. Para Pessoa foi antidestino de que só ele conheceu os emaranhados e tenebrosos fios. Tanto mais emaranhados que, logo que se apercebeu que aquele enredo era real e nenhuma ficção o podia desatar sem remorso e culpa, convoca a sua criatura diabólica Álvaro de Campos para se desfazer de um laço que ele próprio criara para ter a ilusão, solitário absoluto, de que podia ter companhia.
 Assim introduz no seu jogo de sedução impura a parte tenebrosa de si, o mau da fita, Álvaro de Campos. Jogo de sedução que lembra um pouco o de Kierkegaard, se Ofélia pudesse acompanhá-lo nesse jogo, como Regina Olsen o fizera, por ter luzes e a determinação que a cândida e amorosa heroína shakespeariana à força, muito lusitanamente, não possuía. Em vez disso possuía um coração simples, intuitivo e vulnerável, naturalmente amante, sabendo amar como "o amor ama", como também sabia, mas só como virtualidade, o imortal autor da "Ode à Noite".
 Comédia de enganos, anverso de todo o fascínio amoroso? Da sua parte sim e, todavia, não era uma comédia cínica de libertino na alma, apenas a de alguém tão íntimo da noite universal e tão desesperado como raros da linhagem dos danados da terra e abandonados de Deus. No seu caso, consciente disso como todos os filhos de Nietzsche e de Rimbaud, apostados em reinventar "outro sentido" para glorificar uma existência sem ele.
 Alguém imagina possível um diálogo, um encontro viável, entre um émulo de Lautréamont e uma jovem burguesinha, no limiar de uma época emancipadora, mas para quem só o casamento canónico era sinónimo de sucesso e felicidade? Da sua "cultura", no sentido habitual, não há nas suas cartas de amorosa transida e cedo dececionada senão os traços de classe dessa época e pouco mais. Já nesse plano é difícil imaginar uma dissimetria mais funda. Um pouco mais velho, o primeiro reflexo de Pessoa é "infantilizar" o objeto do seu "juvenil" e tardio entusiasmo. Mas talvez o que mais surpreenda para quem conhece tão bem as reticências eróticas do autor do Fausto ("O amor causa-me horror, é abandono/ Intimidade...") ou as suas pulsões pouco canónicas (Antinoos) seja, sob a pluma real do autor de Mensagem, a assunção de um Desejo, se não com maiúscula platónica, pelo menos na sua versão comum, provocado pela Vénus urânia que Ofélia parece ter sido para tão visível esfomeado de amor e companhia.
 Este ostensivo erotismo, embora brincado e mesmo adolescentemente brincalhão (eterno regresso da alma e do corpo à infância de onde emergiu?), surpreendeu e continua a surpreender, menos pela sua óbvia assunção que pelo contraste com a mitologia do Desamor que foi para o poeta a única musa e música a que votou a sua demoníaca (e diviníssima) adoração. O que no espaço da pura virtualidade, que é por essência o da Poesia (de todas e não só a dele, Eróstrato de si mesmo), se celebra e se esconde ao mesmo tempo ("Meu ser vive na Noite e no Desejo.

/ Minha alma é uma lembrança que há em mim") é, quanto muito, misticismo amoroso em torno do "esplendor nenhum da vida".
 Nessas cartas inimagináveis para quem já era o poeta da "Ode Marítima" ou do oitavo poema do "Guardador de Rebanhos", onde a sua "verdade" erótica se exprime em litanias infantis, cheias de "inhos e beijinhos". Mimetismo sacrificial da ternura autêntica vivida à sua altura pela tão pouco celeste mas comovente e desencantada Ofélia, mais destinada a heroína antiga como Efigénia que a vítima sarcástica de um super Hamlet redivivo? Este abismo (escrito) entre a expressão amorosa de Ofélia, vampirizante como todas, e o vampirismo de segundo grau que é o de Pessoa, desta vez nu e sem máscara, na medida em que o podemos conceber como oposto do que desde a infância o elegeu diferente, Narciso cego perdido na sua Noite como essência do mundo e nós nele, surpreendeu e escandalizou aqueles que mais precocemente se viram confrontados com aquilo que o seu biógrafomo, João Gaspar Simões, designou de "enigma de Eros". E que aqui, na correspondência, em vez de solução, conhece uma espécie de metamorfose sem redenção. Para ambos os protagonistas, mas de diversa e oposta versão.
 No plano do banal fait-divers tratou-se de um encontro/desencontro entre dois seres predestinados para nunca se encontrarem e, uma vez encontrados, cada um deles vivendo, um na plena e redentora ilusão de se saber amado - miticamente "para sempre" -, e outro num mundo alheio, insuspeitado da ingénua Ofélia, tão perspicaz na ordem do coração como a Maria do Fausto mas, como ela, votada à desilusão por quem há muito - quase desde a infância - se via e via a vida -a sua e a da Humanidade inteira - como pura e incontornável Ilusão.

Se Ofélia tivesse lido o menor dos poemas do seu efémero e improvável "namorado" (epíteto que apenas concebido lhe seria insuportável), onde nada se glosa senão a evidência de que a Vida é pura Ficção e a chamada Ficção a única e impensável "verdade" dela, não teria embarcado nessa travessia do coração para um porto que nunca existiu para o companheiro/fantasma dessa viagem sem viajante dentro. A pobre (a rica) Ofélia tinha razão quando o seu estranho colega de escritório vinha ao seu encontro com o seu duplo infernal Álvaro de Campos. O coração não a enganava, que o coração só engana quem o não escuta. Essa comédia -versão lisboeta do famoso Dr. Jekyll e Mr. Hyde - nada tinha de cómico. Se o tivesse conhecido a sério (lendo-o menos distraída) teria sabido a tempo que o espetral Álvaro de Campos era a encarnação mesma da "paixão do fracasso", a que Robert Bréchon se refere com pertinência. E nunca ninguém epitetou melhor o génio de espécie nova que escreveu "Tabacaria". Que provavelmente Ofélia nunca leu.
 Em parte alguma Fernando Pessoa está mais ausente de si mesmo, dos outros e do mundo que nestas cartas que têm como palco a espetral cidade de Lisboa, tão viva por fora e tão irreal por dentro com o Poeta jogando o mais sério dos jogos como se fosse o extraterrestre de si mesmo. Todos os leitores conhecem, por ele no-lo ter imposto, o seu mundo de irrealidade sonhada onde desde cedo se refugiou para suportar a insuportável e incógnita realidade do que chamamos Vida.
 Mas nunca, como nestas "fingidas" cartas de amor sem fingimento que as resgate por dentro (quer dizer da poesia mesma que tudo redime, mesmo o que não pode ser redimido), no-lo tornam tão estranho de uma estranheza muito diferente da que o tornou único no espaço do nosso imaginário ocidental e não só.
 Bem sabemos que num celebérrimo poema brincado, Pessoa, como quem antecipadamente se absolve, glosou o tema do fatal ridículo que seriam as cartas de amor em geral, escritas apenas para o segredo e leitura de quem as escreveu.
 E é verdade que à parte as famosas cartas de Mariana Alcoforado, celebradas por Stendhal e que não serão nossas, a nossa epistolografia amorosa conhecida (mal conhecida) não goza de uma reputação muito gloriosa, salvo a que releva de textos em si ficcionais como os do sublime Bernardim ou dos postos por Camilo na boca póstuma da heroína de Amor de Perdição. E, contudo, autênticas e soberbas cartas de amor nossas nada têm de ridículo ou não vivem apenas da paixão sem frases que as elevam acima de si mesmas.

 Exemplo insuperável entre nós, as de Garrett a Rosa Montufar, andaluza ardente e refinada.
 A deceção (relativa) que todos nós, admiradores quase acríticos de quem escreveu o Livro do Desassossego -monumento sem par à tristeza infinita de não saber ou poder amar -, só nos vem, lendo estas cartas -referimo-nos às de Pessoa, que as de Ofélia de tão cândidas e sentidas não desiludem senão pelo excesso de idolatria sem eco à altura dela -por não reconhecermos nelas aquele fulgor inteligente que distinguiu Pessoa e que aqui brilha menos como eco ou reflexo de um amor ou uma ternura que o submergiu ao menos em certos momentos que por uma espécie de "frieza", ou reticência afetiva, que desde o início se manifesta, como se o demónio da dúvida ou a sua hiperconsciência de si e de tudo cavassem um abismo impossível de atravessar entre ele e o outro.
 Robert Bréchon, ecoando David Mourão-Ferreira, sublinhou como convinha e na companhia de outros exegetas de Pessoa, de Ángel Crespo a Leyla Perrone-Moisés, "a impressão estranha" que esta correspondência, destinada a interessar meio mundo por ser de quem é, quase sempre provocou. À parte o contributo nada desprezível que ela representa como uma espécie de diário obcecado e obcecante da vida real do famoso empregado de comércio de Lisboa e da vida lisboeta em pano de fundo, o sentimento de estranheza (de ordem estética, sobretudo?) mantém-se.
 São raras as peripécias desse famoso encontro-desencontro, no plano sempre terrífico do único sentimento onde num segundo se joga o destino de uma vida, que nos transportam como o menor verso do Poeta.
 Mais significativos, mas não inéditos, são os reflexos de uma certa crueldade sem sujeito que em várias passagens transfiguram essa tão banal (por fora) aventura humana em campo de batalha onde só reina um silêncio pior que a morte. Contudo nós não temos um testemunho mais direto da vivência quotidiana do autor de "Ode Marítima" que este combate íntimo com outro ser que o amou sem Literatura. E sem querer reenvia para a única paixão que assolou Pessoa como vocação e destino, a ponto de lhe sacrificar o que cada um de nós chama "felicidade humana", o monstro sublime da nossa imaginação que nós chamamos Literatura.


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