sábado, 20 de outubro de 2012


Retrato _ Autorretrato _ Caricatura





Imagem num espelho


Se alguém descrevesse
o meu rosto, pálpebra,
a pálpebra, aleta a aleta
do nariz, a curva
de lábio a lábio,
a fronte agora, a face depois
eu poderia desdenhar
da solitária alheada
imagem num espelho.

Fiama Hasse Pais Brandão





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- Tenho ciúmes de tudo aquilo cuja beleza não morre. Tenho ciúmes do retrato que você pintou de mim. Porque há-de ele conservar o que eu tenho de perder? Cada momento que passa rouba-me a mim qualquer coisa e acrescenta-lhe qualquer coisa a ele. Quem me dera que fosse de outra maneira! Que o retrato mudasse e eu permanecesse sempre o mesmo que sou! Porque o pintou? Há-de escarnecer de mim, há-de escarnecer de mim, há-de escarnecer de mim horrivelmente!
Irromperam-lhe dos olhos lágrimas ardentes; retirou violentamente a mão das do pintor e atirou-se para o divã, em cujas almofadas escondeu a cabeça, como se rezasse.

Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray
Tradução de Artur Parreira




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O Diogo. Como é que hei-de explicar? O Diogo é um rapaz que se não parece em nada, absolutamente em nada, com os outros. O que gosto mais nele é talvez dos olhos, ou é mesmo a maneira que ele tem de olhar. Quando olha para uma árvore, ou para uma pedra, ou para uma formiga, temos a impressão que para ele não há nada mais importante. Tem uma testa alta. Ao longe, conhecia-o sempre pela testa. E o cabelo, o cabelo castanho e fininho, assim muito macio. Ondulado nas pontas. Parece que estou a vê-lo. No dia em que o conheci trazia uma camisola verde de gola alta. Verde seco. Contou-me que escreve poemas. Que todas as vezes que escrevia era como se resolvesse um problema, depois ficava livre. É assim, é assim o Diogo.

Olga Gonçalves, Mandei-lhe uma boca




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 [...]

    No arrumo da casa há mil coisas a fazer: caixotes por abrir, livros a pôr no lugar. Tomo os instrumentos de trabalho, ponho-me a martelar, pregando, despregando. Os livros pelo chão inquietam-me: têm o ar desgraçado de um stock de alfarrabista. Elevo-os à sua dignidade, perfilando-os nas estantes, irmanando-os na sua comunhão silenciosa. 
 Subitamente, no meio da confusão da livralhada, descubro o álbum da tia Dulce. Estou cansado e sento-me. É um álbum velho, pesado como o tempo. A capa arredonda-se em almofada, com uma dama antiga, em tons verdes e brancos, segurando no regaço um leque fechado. Cinta instantânea, seios pequenos, um olhar enviesado de galanteio clandestino. As folhas cartonadas só se passam devagar; e em cada face de folha, só um ou dois retratos. Vida efémera. Tão breve. E aí, o sonho invencível da solidez, de uma unicidade eterna. Retrato de grupo há só um. Mas as figuras não estão centradas para um ponto único, não nos olham nem se olham, altivas na sua independência. Viram-se para a esquerda e para a direita, para o alto, para a frente, num desafio arrogante. Cerro os olhos e sei de novo que toda esta gente morreu. Mas o que mais me perturba é pensar que o rasto dessa gente está suspenso de mim. Porque eu tenho ainda uma pequena notícia da sua vida, o eco apagado do que foi a massa complexa do seu ser e sentir. Tia Dulce contou-me. E foi como se ela própria se dobrasse à piedade por essa gente desaparecida e quisesse que alguma coisa perdurasse. Mas de muitos retratos já nada sei. São esses que eu fito com mais angústia. Têm olhos espantados ou risonhos ou sérios. Que medos, que sonhos, que virtudes lhes inventaram a vida em eternidade? Mas vós estais mortos e ninguém vos julga e vos ouve. Que sei, porém, de vós outros, meus amigos? Tu, por exemplo, de colarinhos à Lincoln - sim, eu te lembro na voz da tia Dulce. Eras "muito respeitado". E tu, boa moça, de peito armado em folhos e cordões? Eras filha de... Já não sei. Mas não casaste, tia Dulce o disse. Das tuas vigílias, do teu suor de insónia, do teu choro nocturno, eu te invento à minha aflição compadecida. Frágeis fios destas imagens amarelecidas, convergindo para mim, para a minha memória cansada, presos do futuro por uma breve referência, uma nota, uma etiqueta. Terei um filho talvez. Eu lhe contarei o que sei de vós. Mas ele o esquecerá talvez, ou o filho do meu filho, ou o filho do filho do meu filho. Então aparecereis num recanto do sótão absurdos, incríveis, inquietantes, com uma face a falar ainda, como o olhar de um cão que nos fita, nos procura, e que o silêncio de permeio separam irremediavelmente de nós. Mas agora ainda estais vivos, ainda alguém, eu, aqui, silencioso nesta casa solitária, vos liga à vida que freme para lá destes muros na Primavera anunciada, nas primeiras andorinhas que me buscam o beiral, na planície aberta de esperança. Sede vivos neste instante infinitesimal em que vos fito e vos sei um nada do vosso convulso e rico e inverosímil milagre. 
 Fecho o álbum, acendo um cigarro. Para lá da janela atinjo a linha azul do horizonte que se desvanece na tarde. Penso, penso.

[…] 

Vergílio Ferreira, Aparição


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Quase um auto-retrato

Aos vinte e poucos anos escrevi: “meu poema rimou com a minha vida”. Era ainda muito cedo, não sei sequer se é verdade, embora muitas coisas me tivessem já acontecido: amores, partidas, guerra, revoltas, "prisões baixas". O que mais tarde me levaria a dizer: "biografia a mais". Muito antes, lá pelos vinte, tinha lido uma frase de André Gide que me impressionou. Dizia ele: "a análise psicológica deixou de me interessar desde o dia em que cheguei à conclusão de que cada um é o que imagina que é." Até que ponto sou o que me imaginei ser? Se soubesse pintar (mas não sei) faria o meu auto-retrato a olhar para ontem, ou para dentro, ou para outro lado. Distraído-concentrado, presente-ausente, um não sei quê.
Acusam-me de altivez e narcisismo. É sobretudo reserva, timidez e uma incapacidade física de praticar uma certa forma portuguesa de hipocrisia e compadrio. Ou talvez um tique que herdei de família: levantar a cabeça, olhar a direito.
Tenho desde pequeno a obsessão da morte. Não o medo, mas a consciência aguda e permanente, sentida e vivida com todo o meu ser, de que tudo é transitório e efémero e não há outra eternidade senão a do momento que passa. Talvez por isso seja um homem de paixões. Mas não vivi nunca póstumo, nem me construí literariamente. Sei que nenhum verso vence a morte. E não acredito sequer na literatura.
Na poesia, sim. Mas como ritmo, como música interior, canto e encanto, incantação, exorcismo, uma forma de relação mágica com o mundo. A um professor brasileiro que trabalhava numa tese sobre mim, respondi: "Escrita e vida são inseparáveis. Embora eu entenda a poesia como experiência mágica, algo que está aquém e além da literatura."
Penso, como Teixeira de Pascoais, que "o ritmo é a substância das cousas" e que "a poesia nasceu da dança." Talvez por isso eu goste de flamenco, a música e a dança que estão mais perto do ritmo primordial, da batida do coração e da própria pulsação da terra. Gosto de flamenco e de um certo tipo de fado e dos tangos de Francisco Canaro. E também de Bach e Mozart. Pelas mesmas razões: o ritmo. E da poesia de Lorca que, ao contrário de ideias feitas, nada tem de folclórico ou regionalista, antes se aproxima das energias primitivas e essenciais e é quase, como diria ainda o autor de Marânus, "um bailado de palavras."
Não sei se, como queria Rimbaud, consegui fazer "coincidir a essência da poesia com a existência do poema." Cantei, canto. Demanda, errância. Não há senão esse procurar. Na vida, na escrita. Quando faço aquilo de que gosto, faço-o intensamente. A pesca, por exemplo. Ou a viagem. Ou a partilha: um bom jantar em família com alguns amigos, uma reunião conspirativa, a camaradagem na nunca perdida ilusão de que a revolução ainda é necessária e possível.
Diria que é outra forma de escrita. Intensa, densa, tensa. Como o amor. E talvez a morte.
Herdei de minha mãe uma certa energia, o gosto da intervenção. De meu pai, o desprendimento, uma irresistível e por vezes perigosa tendência para o desinteresse. Inclusivamente pelos bens materiais. Não é por acaso que só me prendo realmente ao que poderia chamar as minhas armas: espingardas propriamente ditas, "gostei muito de caçar", canas de pesca, carretos, canetas, livros (alguns livros), discos. Os grandes espaços: o deserto, o Atlântico, o Alentejo. E sítios. Certas cidades. Outrora agora: Coimbra, Paris, Roma, Veneza, Lisboa. Certos lugares: o Largo do Botaréu, em Águeda, o rio, a ria (de Aveiro), Barra, Costa Nova. Mais recentemente: Foz do Arelho, Barragem de Santa Clara. Certos recantos: a minha casa de Águeda, o solar, já perdido, da minha avó, em S. Pedro do Sul, as casas da minha tia e meus primos na Anadia, a casa de Sophia, a minha casa em Lisboa. A minha mulher, os meus filhos, a minha irmã, os meus amigos. Uma grande saudade dos que morreram, principalmente de meu pai, a quem, por pudor e reserva (somos parecidos), nunca cheguei a dizer em vida o que gostaria de lhe dizer aqui.

Manuel Alegre - aqui

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  [...]

    O melhor é voltar atrás, ao começo de tudo. Há mil anos (ou mais), alguém repara atentamente numa garrafa cheia de água e descobre a primeira objectiva. Lá está a imagem da realidade, quando os raios solares passam através da água.
    A voz lenta do pai (uma lentidão excessiva). Espécie de exorcismo, que detém (demora) o essencial, que permite enfim analisá-lo? Não há sílabas soltas. Palavras sem fracturas, sem empastamentos: um bloco íntegro, mas distendido. Fala como se esticasse a massa espessa dos sons (que a respiração envolve num hálito de brandy). Levanta o cálice e bebe-o dum trago. Limpa a boca ao lenço tabaqueiro dobra-o pelos vincos iniciais, torna a metê-lo no bolso superior do casaco. (À mostra, fica apenas uma barra vermelha, desbotada pelo uso e o ferro de engomar). Estende a mão para o livro poisado na mesa de vinhático e procura a página exacta:
     - Como diz o compêndio de fotografia: a imagem apresenta um ordenamento inverso do real, mas captou-lhe os elementos essenciais.
    Ergue os olhos do livro e fita (através da vidraça) a paisagem deserta. Pode confrontar, sempre que lhe apetece, a fotografia (na parede, junto da janela) e a realidade exterior, a horas certas, sob a luz quase igual: 
  - Mesmo ordenada ao contrário (quer dizer, de pernas para o ar), a imagem repete (com grande semelhança) areia, gramíneas, céu, lagoa, nuvens. E outros elementos, se os houver. Homens, cavalos, bois, carneiros, aves (por exemplo). Serão também captados na lente rudimentar da garrafa de água, quando aparecerem. A imagem não é perfeita (escapam-lhe alguns pormenores), mas foi o ponto de partida. Cálculos, sonhos, tentativas. Até à invenção das lentes, à possibilidade de surpreender as coisas sem grande margem de erro. E (mais tarde ou mais cedo) os seus enigmas. A criança espera com paciência. De súbito, julga ouvir nas palavras do pai o eco de uma voz e não a própria voz (soando onde?). O real outra vez às avessas. Pensa também num gume fulgurante (e ignora porquê). Relâmpago ao longe, sobre as dunas?     Nas dunas, ficam a pairar as aves brancas do desenho, nessa mesma tarde: desce ao jardim e o revérbero entre as nuvens dá início (pouco antes da chuva) à versão povoada da paisagem.
 - Lentes para fixar o grão de areia, o astro. Trazê-los tal e qual para dentro de casa, observá-los tão de perto que desprendam por fim as normas maiores e menores da sua arquitectura. Novo cálice de brandy (o quinto? o sexto?), bebido agora devagar, pondo de acordo o gesto e as palavras:
 - Magia, imaginação, limitam-se a colher o rigor submerso da realidade. Os números, a geometria, em que o mundo repousa. 
    [...] 
Carlos Oliveira, Finisterra


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RETRATO DE MÓNICA
 
Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares, Porto, Figueirinhas, 1996 (29ª ed.). - aqui -


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