CRÓNICAS
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- O que é uma crónica?
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Sobre a crônica
Ivan Ângelo
Uma leitora se refere aos textos aqui publicados como “reportagens”. Um
leitor os chama de “artigos”. Um estudante fala deles como “contos”. Há os que
dizem: “seus comentários”. Outros os chamam de “críticas”. Para alguns, é “sua
coluna”.
Estão errados? Tecnicamente, sim — são crônicas —, mas... Fernando Sabino,
vacilando diante do campo aberto, escreveu que “crônica é tudo o que o autor
chama de crônica”.
A dificuldade é que a crônica não é um formato, como o soneto, e muitos
duvidam que seja um gênero literário, como o conto, a poesia lírica ou as
meditações à maneira de Pascal¹. Leitores, indiferentes ao nome da rosa, dão à
crônica prestígio, permanência e força. Mas vem cá: é literatura ou é
jornalismo? Se o objetivo do autor é fazer literatura e ele sabe fazer...
Há crônicas que são dissertações, como em Machado de Assis; outras são
poemas em prosa, como em Paulo Mendes Campos; outras são pequenos contos, como
em Nelson Rodrigues; ou casos, como os de Fernando Sabino; outras são
evocações, como em Drummond e Rubem Braga; ou memórias e reflexões, como em
tantos. A crônica tem a mobilidade de aparências e de discursos que a poesia
tem — e facilidades que a melhor poesia não se permite.
Está em toda a imprensa brasileira, de 150 anos para cá. O professor
Antonio Candido observa: “Até se poderia dizer que sob vários aspectos é um
gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e pela
originalidade com que aqui se desenvolveu”.
Alexandre Eulálio, um sábio, explicou essa origem estrangeira: “É nosso familiar essay², possui tradição de primeira ordem, cultivada desde o amanhecer do periodismo nacional pelos maiores poetas e prosistas da época”. Veio, pois, de um tipo de texto comum na imprensa inglesa do século XIX, afável, pessoal, sem-cerimônia e, no entanto, pertinente.
Alexandre Eulálio, um sábio, explicou essa origem estrangeira: “É nosso familiar essay², possui tradição de primeira ordem, cultivada desde o amanhecer do periodismo nacional pelos maiores poetas e prosistas da época”. Veio, pois, de um tipo de texto comum na imprensa inglesa do século XIX, afável, pessoal, sem-cerimônia e, no entanto, pertinente.
Por que deu certo no Brasil? Mistérios do leitor. Talvez por ser a obra
curta e o clima, quente.
A crônica é frágil e íntima, uma relação pessoal. Como se fosse escrita
para um leitor, como se só com ele o narrador pudesse se expor tanto. Conversam
sobre o momento, cúmplices: nós vimos isto, não é, leitor?, vivemos isto, não
é?, sentimos isto, não é? O narrador da crônica procura sensibilidades irmãs.
Se é tão antiga e íntima, por que muitos leitores não aprenderam a chamá-la
pelo nome? É que ela tem muitas máscaras. Recorro a Eça de Queirós, mestre do
estilo antigo. Ela “não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do
poeta, nem a voz doutoral do crítico; tem uma pequena voz serena, leve e clara,
com que conta aos seus amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando,
esmiuçando”.
A crônica mudou, tudo muda. Como a própria sociedade que ela observa com olhos atentos. Não é preciso comparar grandezas, botar Rubem Braga diante de Machado de Assis. É mais exato apreciá-la desdobrando-se no tempo, como fez Antonio Candido em “A vida ao rés do chão”: “Creio que a fórmula moderna, na qual entram um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis³ de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma”. Ainda ele: “Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”.
A crônica mudou, tudo muda. Como a própria sociedade que ela observa com olhos atentos. Não é preciso comparar grandezas, botar Rubem Braga diante de Machado de Assis. É mais exato apreciá-la desdobrando-se no tempo, como fez Antonio Candido em “A vida ao rés do chão”: “Creio que a fórmula moderna, na qual entram um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis³ de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma”. Ainda ele: “Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”.
Elementos que não funcionam na crônica: grandiloquência, sectarismo,
enrolação, arrogância, prolixidade. Elementos que funcionam: humor, intimidade,
lirismo, surpresa, estilo, elegância, solidariedade.
Cronista mesmo não “se acha”. As crônicas de Rubem Braga foram vistas pelo sagaz professor Davi Arrigucci como “forma complexa e única de uma relação do Eu com o mundo”. Muito bem. Mas Rubem Braga não se achava o tal. Respondeu assim a um jornalista que lhe havia perguntado o que é crônica:
Cronista mesmo não “se acha”. As crônicas de Rubem Braga foram vistas pelo sagaz professor Davi Arrigucci como “forma complexa e única de uma relação do Eu com o mundo”. Muito bem. Mas Rubem Braga não se achava o tal. Respondeu assim a um jornalista que lhe havia perguntado o que é crônica:
— Se não é aguda, é crônica.
1. Blaise Pascal (1623-1662), matemático, filósofo e teólogo francês, autor de Pensamentos.
2. “Ensaio familiar”. Ensaio é um gênero inaugurado por Michel de
Montaigne (1533-1592); vem da palavra francesa essayer (“tentar”). Um
ensaio é um texto onde se encadeiam argumentos, por meio dos quais o autor
defende uma ideia.
3. Em latim, “a quantidade necessária”.
Veja São Paulo, 25/4/2007. AQUI
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Carta para Josefa,
minha avó
Tens noventa anos. És
velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu
acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés
encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de
água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um
banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria
cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e
lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa,
lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada do
mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de
filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário
elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também
aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da
vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes
dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é
apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio.
Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da
igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo
o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és
alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti, e
não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este
mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo
ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério
inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras,
um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de
barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e
pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não
entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então
que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o
porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que
tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem
mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos
realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o
mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso
ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta,
aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde
nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes,
com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência
nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.
É isto que eu não
entendo – mas a culpa não é tua.
José Saramago (1985).Deste Mundo e do Outro: Crónicas. (2ª ed.). Lisboa: Editorial Caminho.
O meu avô,
também
Talvez o dia chuvoso
seja o responsável desta melancolia. Somos uma máquina complicada, em que os
fios do presente activo se enredam na teia do passado morto, e tudo isto se
cruza e entrecruza de tal maneira, em laçadas e apertos, que há momentos em que
a vida cai toda sobre nós e nos deixa perplexos, confusos, e subitamente
amputados do futuro. Cai a chuva, o vento desmancha a compostura árida das
árvores desfolhadas – e dos tempos passados vem uma imagem perdida, um homem
alto e magro, velho, agora que se aproxima, por um carreiro alagado. Traz um
cajado na mão, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas
do céu. À frente, caminham animais fatigados, de cabeça baixa, rasando o chão
com o focinho. Homem e bichos avançam sob a chuva. É uma imagem comum, sem
beleza, terrivelmente anónima.
Mas o homem que assim se aproxima,
vago, entre cordas de chuva que parecem diluir o que na memória não se perdeu,
é meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil,
de desconforto, de ignorância. E, contudo, é um homem sábio, calado e metido
consigo, que só abre a boca para dizer as palavras importantes, aquelas que
importam. Fala tão pouco (são poucas as palavras realmente importantes) que
todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende qualquer coisa
como uma luz de aviso. Fora isso, tem um modo de estar sentado, olhando para
longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede mais próxima, que chega a ser
intimidade. Não sei que diálogo mudo o mantém alheado de nós. O seu rosto é
talhado a enxó, fixo mas expressivo, e os olhos, pequenos e agudos, têm de vez
em quando um brilho claro como se nesse momento alguma coisa tivesse sido
definitivamente compreendida. Parece uma esfinge, direi eu mais tarde, quando
as leituras eruditas me ajudarem nessas comparações tão abonatórias de uma
fácil cultura. Hoje digo que parecia um homem.
E era um homem. Um homem igual a
muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein
perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um
grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria, que não pôde ser nunca. Recordo
agora aquela noite morna de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira
– ouço-o ainda falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as
nossas cabeças resplandecia (as coisas que ele sabia do céu e das estrelas), do
gado que o conhecia, das histórias e lendas que eram o seu cabedal da infância
remota. Adormecemos tarde, enrolados na manta lobeira, que a madrugada
refrescaria com certeza e o orvalho não caía só sobre as plantas.
Mas a imagem que me
não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso, como
quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas, nessa
altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda não
sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a
palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu
quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a
comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a
memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a
interrogação das estrelas. Só isto – e também o gesto que de repente me põe de
pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo.
José Saramago (1985).
Deste Mundo e do Outro: Crónicas. (2ª ed.). Lisboa:
Editorial Caminho.
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Uma casa cheia de livros
Os livros, esses animais sem pernas, mas com olhar, observam-nos mansos
desde as prateleiras. Nós esquecemo-nos deles, habituamo-nos ao seu silêncio,
mas eles não se esquecem de nós, não fazem uma pausa mínima na sua vigia,
sentinelas até daquilo que não se vê. Desde as estantes ou pousados sem ordem
sobre a mesa, os livros conseguem distinguir o que somos sem qualquer expressão
porque eles sabem, eles existem sobretudo nesse nível transparente, nessa dimensão
sussurrada. Os livros sabem mais do que nós mas, sem defesa, estão à nossa
mercê. Podemos atirá-los à parede, podemos atirá-los ao ar, folhas a restolhar,
ar, ar, e vê-los cair, duros e sérios, no chão.
Quando me pediram para entrar numa sala, entrei. Não contava
surpreender-me. Estávamos numa biblioteca pública e eu era capaz de imaginar
com antecedência o que me queriam mostrar. A senhora que caminhava dois passos
à minha frente era dona de uma voz branda, feita de boa fazenda, e dizia que se
tratava da oferta de um senhor que tinha morrido. O filho tinha cumprido a
vontade do pai e tinha acordado as condições com a biblioteca: quase nenhumas.
A sala não era uma sala, era uma sucessão de salas. Cada uma delas estava
completamente ocupada por estantes cheias. Com a mesma voz de antes, a senhora
explicava-me que os livros tinham vindo nas próprias estantes onde estavam. Uma
empresa de mudanças tinha-se ocupado desse serviço durante dia e meio, sem
parar, meia dúzia de homens.
Eu já vi muitos livros e não contava surpreender-me mas, depois, prestei
mais atenção. Enquanto ouvia a descrição do cenário em que encontraram os
livros - uma casa cheia de livros, todas as paredes cheias, do chão ao tecto,
prateleiras com duas fileiras de livros, pilhas de livros - foquei o meu olhar
nas lombadas, nos títulos. A forma como estavam ordenados, lembrou-me a
caligrafia da minha avó, uma caligrafia septuagenária, agarrada a uma perfeição
talvez desnecessária, a um esforço de manter a correcção mesmo depois de estar quase
tudo perdido, como se essa correcção pudesse salvar. Tratava-se de uma
organização que previa a dimensão estética - o tamanho das edições, as
colecções, as cores das capas - mas, também, uma vertente literária - géneros,
história da literatura - e alfabética - B depois do A. Por vincos ínfimos, dava
para perceber que eram livros lidos. Mas tão bem tratados, tão minuciosamente
acarinhados. Ao mesmo tempo, entre prateleiras, entre salas, fui percebendo
quais eram os autores que, criteriosamente, não estavam representados e quais
os que tinham toda a sua obra naquelas estantes; fui percebendo quais os
períodos e os temas que interessavam à pessoa que juntou todos aqueles milhares
de livros.
É uma vida, repetia a senhora, é uma vida inteira. E contou que aqueles
livros estavam agora à espera de serem catalogados e, a pouco e pouco,
arrumados junto dos outros. Foi nesse momento que consegui distinguir com
clareza o quanto estavam assustados. Olhavam para todos os lados, não conheciam
o futuro que os esperava. Afinal, o eterno podia mudar com tanta facilidade,
bastava um sopro. Foi nesse momento que consegui distinguir as suas vozes
fininhas, a cruzarem-se no ar daquelas salas, cheiro a livros e a medo.
Vestidos com roupas novas, roupas nobres e tão despreparados para as exigências
de uma realidade feita de mãos e transtornos, feita de pressa real.
Muito tempo depois de sair de lá, a quilómetros de distância, voltei a
pensar naqueles livros. Aquela selecção privada iria diluir-se nas prateleiras
da biblioteca. O fim de uma ilusão costuma causar-me melancolia. Foi o caso.
Muito provavelmente, na memória daqueles livros, o tempo que passaram nessa
casa antiga, protegida, iria diluir-se também. Daqui a anos, depois de mundo e
cicatrizes, ao encontrarem-se por acaso poderão nem sequer reconhecer-se.
Poderão ser como aquelas pessoas que se reencontram e que não sabem se devem
cumprimentar-se ou não e que, ao não fazê-lo, é como se tivessem deixado de
conhecer-se.
Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do
céu, fazem grandes linhas rectas e, ao atingir o chão, explodem em silêncio.
Tudo neles é absoluto, até as contradições em que tropeçam. E estão lá, aqui, a
olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes
tanto, até a loucura, até os pesadelos, até a esperança em todas as suas
formas.
José Luís Peixoto, in Jornal de
Letras (Maio, 2011) - AQUI -
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Manuel António Pina
Excertos da entrevista ao JL, publicado no n.º 1035, de 2 de Junho de
2010.
(ler na íntegra aqui:
http://visao.sapo.pt/premio-camoes-manuel-antonio-pina=f602460#ixzz2DY4F8IuV )
JL: Soube-se recentemente que tinha sido criada a primeira célula que pode
chamar pai a um computador. E o cientista introduziu no programa frases de
Joyce que de alguma maneira se inscreveram no adn dessa célula artificial: Esta
é a crónica do tempo ou a crónica da criação literária?
Manuel António Pina: Da criação literária, só se for da de Joyce.
Mesmo sendo o ADN memória e embora a memória (incluindo a da literatura)
constitua a matéria prima fundamental da literatura, a criação literária
implica mais que matéria-prima, implica mão-deobra, trabalho, isto é,
"fazer" (poiesis).
Curiosamente chama-se por vezes 'literatura' às 'bulas' dos remédios e aos
tratados médicos. E há quem fale de uma ligação entre a ciência e a cultura ou
mesmo a literatura. Interessam-lhe essas possibilidades do ponto de vista da
poesia? E como cronista?
Sim, interessam (mais decerto na poesia do que nas crónicas). A poesia e a
ciência partilham, interrogando o real interrogando-se ao mesmo tempo a si
mesmas, uma fronteira não raro difusa.
Por outro lado, a poesia é, como a ciência, uma prática artesanal, algo
feito do próprio fazer. Hoje, quando já não há ninfas nos regatos, as ciências,
principalmente as do infinitamente grande, como a astronomia, e as do
infinitamente pequeno, como a física das partículas, ou como ainda, a vários
títulos, também a biologia e a química, ou mesmo a neurologia, têm não só uma
natureza, como dizer?, "poética" (não encontro agora palavra melhor)
como, exprimindo-se fora da linguagem matemática, se socorrem às vezes de uma linguagem
próxima da da poesia.
Como?
Diz Álvaro de Campos que "o binómio de Newton é tão belo como a Vénus
de Milo"; mas também Stephen Weinberg (um Nobel da Física) fala igualmente
de beleza (e de verdade) quando explica o seu deslumbramento com a hipótese de
Witten de teoria unificada, a Teoria-M: "Quando Edward Witten a expôs,
pensei: 'É tão bela que tem que ser verdadeira!'" Invertendo Novalis,
talvez seja possível dizer hoje a propósito de muito do conhecimento científico
que "quanto mais verdadeiro, mais poético".
Como poderíamos fazer o genoma de uma escrita como a sua, que é poesia,
crónica, ficção e teatro? É uma sequência ou várias ramificações?
Postas assim as alternativas, escolho "ramificações". Embora a
crónica não se adapte bem ao conceito de "ramificação" pois, pelo
menos do modo especificamente jornalístico como eu a pratico, é de natureza
diferente da literatura, mesmo que possa às vezes ter pontos de contacto com
ela e ser, como ela, "abandono vigiado" (a expressão é de Alexandre
O'Neill).
E não será apenas literatura "por outras palavras"?
Literatura não é certamente, embora eu não esteja certo do que seja ou não
a literatura. Algumas vezes será, no máximo, jornalismo com saudades da
literatura, ou literatura com remorsos de ser jornalismo.
ARTE EFÉMERA
Há uma arte da crónica?
Há. Em alguns casos, uma arte maior. Mas é sempre (repito: do modo como eu
a pratico) uma arte efémera e voraz, prisioneira do tempo e das circunstâncias.
Por isso tenho oferecido resistência a propostas para publicar as minhas
crónicas em volume, despojadas das suas circunstâncias (incluindo os
constrangimentos concretos de escrita). Sinto uma espécie de culpa ao fazê-lo,
como se cometesse uma traição.
Porquê?
Porque não são já crónicas, são anacrónicas (o meu primeiro livro de
crónicas chama-se justamente O anacronista).
Havia um velho tipógrafo no Jornal de Notícias que se impacientava com o
meu cuidado e preocupação com títulos e textos (eu era então responsável pelo
fecho do jornal), dizendo-me que os jornais, no dia seguinte, só servem para
embrulhar peixe. Mas não é o destino de tudo no dia seguinte, do jornalismo
como da literatura, embrulhar peixe?
Uma crónica pode sempre acontecer, mesmo quando não ocorrem nem romances,
nem versos?
Não é uma questão de poder ou não acontecer. Para quem, como eu, assumiu
profissionalmente o compromisso de escrever uma todos os dias, tem que
acontecer.
E isso não é constrangedor? Como consegue evitar a 'mecanização' ou a
rotina do cronista?
Tenho um truque (uma espécie de ostinato rigore que provavelmente nem
sempre funciona): não ceder ao previsível, tentar fazer de cada vez o máximo de
que sou capaz é o mínimo que procuro exigir-me.
Nunca lhe ocorrem crónicas independentemente do compromisso, de 'geração
espontânea'?
Raramente, e só aos fins-de-semana, quando não tenho crónica para
escrever...
As suas crónicas ocupam-se mais da realidade ou estão mais perto do real do
que os seus poemas? Ou falamos de duas realidades?
Na verdade, falamos de muitas e incoincidentes realidades. Parafraseando
Mário de Sá-Carneiro, "é no real que ondeia tudo! É lá que tudo
existe!"
O que o faz escrever uma crónica?
O que me faz escrever crónicas é, principalmente, como já deixei dito, a
obrigação de as fazer, pois é assim que ganho a vida. Trata-se de uma servidão,
mas não é a própria vida uma servidão?
REGATEAR COM AS PALAVRAS
Mas como escolhe o assunto?
Como as faço? Sento-me diante do computador à procura, em jornais, em
blogues, sei lá onde mais, de "assunto" (de uma faúlha capaz de
incendiar ou, ao menos, chamuscar a vontade de escrever a propósito ou a
despropósito) com a dead line à perna e confio-me ao improvável deus dos
cronistas sabendo que, às 23 horas, aconteça o que acontecer, tenho que ter o
morto feito à medida exacta do caixão dos 1100 caracteres, mais um título de
duas linhas com o limite de 13 caracteres cada (regateando com os gráficos se,
por exemplo, a linha calha de ter vários ii, que são caracteres um pouco mais
estreitos que os demais consigo às vezes um bónus de um ou dois caracteres).
Costuma escrever a mais?
Entretanto, ao longo destes anos, interiorizei o ritmo e as crónicas já me
saem quase sempre na medida mais ou menos certa; depois é só regatear com as
próprias palavras.
Há sempre uma intencionalidade numa crónica? Por exemplo, de intervenção
política, social ou cultural? E de cidadania?
O facto de ter que escrever todos os dias, quase sempre em cima do dead
line, faz com que muitas das minhas crónicas tratem matérias políticas ou
sociais, que são as que estão mais à mão. Não me move, no entanto, qualquer,
como diz, "intencionalidade" de intervenção, política ou outra.
Limito-me a reflectir (cepticamente a maior parte das vezes) em voz por assim
dizer alta. Não tenho nada para vender a ninguém.
Não se considera portanto um opinion maker?
Valha-me Deus, não.
As suas crónicas situam-se mais no território do presente, enquanto os
poemas remetem para a memória?
O presente é também construção, memória. A diferença fundamental entre uma
coisa e outra é, acho eu, de natureza.
QUERO LÁ SABER DO FUTURO
Em que sentido?
Na crónica, a palavra é predominantemente instrumental de uma intenção de
comunicação; na poesia, a intenção, se é possível falar de intenção, é a
própria palavra, o seu "fazer" e, principalmente, o seu
"fazer-se".
Poderíamos antes falar de inquietação? Com que palavras podemos dizer o
fazer da poesia? Também há uma disciplina do poeta?
Sim, há uma disciplina. Rimbaud fala de "liberdade livre", mas a
liberdade que existe na poesia é fundamentalmente a de escolher as suas
próprias servidões. É essa escolha que faz que, mesmo na poesia metrificada e
mesmo em formas canónicas como o soneto, os grandes poetas sejam tão diferentes
uns dos outros.
Escreve crónicas para "memória futura" ou esse é o alcance da
poesia?
Para "memória presente", as crónicas como a poesia. Quero lá
saber do futuro!
Não gosta de falar da poesia que escreve, porquê?
Costumo furtar-me a perguntas dessas com uma resposta equívoca, mas nem por
isso menos verdadeira: a minha poesia é tudo o que tenho a dizer sobre ela.
Com as crónicas é diferente?
Sim, com as crónicas é diferente. Falo delas sem constrangimento. Talvez porque
tudo, nelas, seja mais óbvio, pelo menos para mim.
Disse um dia que talvez escrevesse para não ter medo: continua a ser assim?
Já o disse várias vezes e, por isso, deve ser verdade, como diria o Homem
do Sino de A caça ao Snark, embora agora me pareça que deveria antes ter dito
"por ter medo".
E isso aplica-se também às crónicas?
As crónicas não, as crónicas escrevo-as comezinhamente para ganhar a vida, já
que ninguém a ganha por mim.
Lembra-se como começou a escrever crónicas? De que se ocupava na primeira?
Por acaso lembro-me dessa primeira crónica. Foi publicada no JN, pouco
depois de ter chegado ao jornal, em 1971. Falava de um homem que vira adormecer
de cansaço numa fila de espera do autocarro na Avenida dos Aliados, e da
impaciência dos outros passageiros quando o autocarro chegou e ele não se
mexeu. Havia nessa crónica uma frase que causou engulhos ao então director do
jornal.
Qual?
"Ordem e tudo no seu lugar, como dizem os bem instalados".
Depois de esclarecido sobre a inocência da frase, o director disse-me:
"Olhe, talvez isso não queira de facto dizer nada, mas estou certo de que
há por aqui alguma sacanice. Diga-me onde está para que a corte já, sem ser
obrigado a ler tudo..." A partir da crónica da semana seguinte comecei,
por isso, a meter duas 'sacanices', uma para ser cortada (o director não
acreditava que as minhas crónicas dessem ponto sem nó, e temia naturalmente a
intervenção da Censura) e outra para lá ficar...
Tem uma ideia de quantas já escreveu?
Já devo ter escrito uns bons milhares (que diabo, sou jornalista vai para
40 anos e sempre escrevi crónicas, primeiro semanalmente, agora diariamente e
quinzenalmente).
Recorda alguma em particular?
Assim de repente, lembro-me dessa primeira de que antes falei e de uma ou
outra a propósito da morte de amigos.
E de outros cronistas? Tem referências?
As minhas referências mais antigas de cronistas são talvez Rubem Braga, que
lia nas páginas do Cruzeiro, e Carlos Drummond de Andrade. E, mais tarde,
Fernando Assis Pacheco e Pedro Alvim nas páginas do Diário de Lisboa. Mais
recentemente, Rui Cardoso Martins e o excelente Levante-se o réu, no Público.
Já recebeu vários prémios como cronista e publicou outros livros de
crónicas. O que quis juntar no corpo deste novo volume?
O presente volume de crónicas nasceu da persistência do editor José da Cruz
Santos, que há anos vinha insistindo comigo para que publicasse uma antologia.
E da disponibilidade e generosidade de Sousa Dias, que se encarregou da
selecção, entre quase três mil, de duas centenas e meia delas.
Foi Sousa Dias quem escolheu (recolhendo mesmo muitas que entretanto eu
havia perdido) as que deveriam ser incluídas na antologia, quem as organizou tematicamente,
quem as reviu.
Gabo-lhe a paciência, porque eu seria incapaz de fazê-lo.
Se as crónicas são de minha autoria, o autor do livro é, de facto, ele.
ÚLTIMOS POEMAS
O seu primeiro livro de crónicas, a que já se referiu, tinha um título
fabuloso, O anacronista. Neste caso, optou por um título que repete o nome da
sua crónica diária. Porquê?
Por razões comerciais, e porque muitos leitores do JN se me vinham
dirigindo sugerindo a publicação das crónicas em volume (guardo a carta de um
que me dizia que esse seria um livro que gostaria de poder deixar ao neto; o
primeiro exemplar que eu receba há-de ser para lhe mandar), o título repete o
das crónicas diárias que há cinco anos escrevo no JN: "Por outras
palavras", e acrescentado, porque há também no volume textos saídos em
outras publicações, de "& mais crónicas de jornal".
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A Viagem Tecida
10 JAN 12
O Núcleo Museológico da antiga Real Fábrica Veiga, na Universidade da Beira
Interior, na Covilhã, onde decorreu a última emissão da Mesa do Canto, entre
velhas máquinas da indústria têxtil resgatadas da teia de abandono, é um lugar
encantatório desconhecido de muitos habitantes da cidade e por isso pouco
visitado. E tantos ali poderiam iniciar uma viagem à sua própria história e à
história da comunidade de que são pertença. É para essa viagem que chama a
exposição agora anunciada no Núcleo da Real Fábrica Veiga. A exposição tem
inauguração marcada para o próximo sábado à tarde e dela dou notícia com a
antecedência bastante para que os da Covilhã descubram os trilhos mais
secretos, e se preparem para a viagem. Trata-se de uma exposição de tapeçaria
contemporânea de Maria Altina Martins, cujas obras já foram noutras ocasiões
mostradas no espaço da antiga fábrica. Chama-se "Viagem Tecida" e
reúne o trabalho feito por uma grande artista ao longo de 20 anos. A teia por ela
tecida, em lã e linho e algodão, deitando mão de outros materiais, metais
nobres, tamancas, pedras, crinas, cabelos. Assim esta mulher, formada na Arco,
bolseira da Gulbenkian desde o final dos anos 70, docente no departamento
têxtil na António Arroio, nos deslumbrou, há uma década, com a sua exposição
itinerante "Pátria Mundo", propondo uma interpretação singular da
epopeia dos Descobrimentos. Assim nos confrontou, há 3 anos, no Museu Nacional
do Traje com a sua Silenciosa Divisa, numa estimulante parceria com os vidros
de João Pedro Silva. Têxtil e vidro confrontando-se, encontrando-se em
esculturas em redor das quais soou, nessa tarde inaugural de Abril de 2009, o
saxofone de Edgar Caramelo.
Maria Altina Martins, já nos tinha mostrado Constelações no castelo de
Mértola. Já nos tinha deslumbrado com os figurinos em tapeçaria para a
encenação d' "Os Bichos", de Torga, levada por João Brites, e pelo
Bando, há 20 anos, à Europália.
Ela é um dos grandes nomes da tapeçaria contemporânea.
Chama-nos para a Viagem. Tecendo e desfazendo a teia. A Viagem Tecida.
É preciso descer as escadas da Universidade até à ribeira, nas curvas da
encosta. É preciso procurar o caminho. A teia, a lã e a neve.
Fernando Alves – Sinais – T.S.F.
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U omãi qe dava pulus (i
põtapés na gueramática)
"Ser visto e ser ouvisto pelos portugueses é também uma razão
de justificar o investimento" - Miguel Relvas
A gente somos um país muita curioso. Houveram eleições e, com
base no que tínhamos visto e ouvisto na campanha eleitoral, votámos
maioritariamente nos partidos que assinaram com a troika um acordo, digamos,
difícil de cumprir. Mas hádem dizer-me quantos são, mesmo entre os que votaram
no seu partido, aqueles que admiram, respeitam ou sequer toleram o trabalho e a
figura de Miguel Relvas. O ministro não parece ser muito popular, derivado do
seu envolvimento em alguns escândalos como, por exemplo, o da licenciatura. Mas
nem por isso deslarga o poder. Entrou para dentro do Governo, há dois anos
atrás, e ninguém o tira de lá. Para fora.
Prontos, mas as pessoas não são só defeitos. E Miguel Relvas tem
o grande mérito de constituir um exemplo, parece-me a mim. Muitos desempregados
não conseguem arranjar emprego por causa que têm habilitações a mais. Miguel
Relvas obteve o seu com emprego mesmo tendo claramente habilitações a menos.
Apontou para baixo e foi bem sucedido. Estabeleceu um objectivo mais modesto e
atingiu-o. E ainda o acusam de ser muito ambicioso...
Os cortes no Estado social não são uma necessidade de poupança,
são uma estratégia de futuro. Relvas deseja que o Governo faça cortes na
educação porque ele próprio cortou na sua e venceu. Conhece, por experiência
própria, as vantagens de desinvestir na educação. É um exemplo de sucesso de
deformação profissional. Como cidadões, temos muito a aprender com ele. Ou a
desaprender, já não sei.
Soares fala mal francês, Sócrates falava mal inglês e espanhol,
e Relvas fala mal português. Quase todos os políticos que nos governam hoje
falam mal português, aliás. Veja-se o caso de Angela Merkel. Saberá dizer duas,
três palavras no máximo. Os nossos dirigentes sempre tiveram um problema com as
línguas. E, tendo em conta o estado em que o país se encontra, também não
parecem ser melhores nos números. Talvez tenham sido daqueles alunos que só
eram bons em educação física.
Ricardo Araújo Pereira
Aqui: Visão
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